quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Recordar

Pip, pip, pip...O som despertou-a do pesadelo de uma vida. Sentia o cérebro embrulhado, não conseguia raciocinar com clareza. As pálpebras pesavam-lhe mas de cada vez que cedia e fechava os olhos via luzes intensas. Os membros pesavam-lhe, não se conseguia mexer. Sentiu o cheiro a éter e desinfectante. Lentamente, muito lentamente tudo começou a vir a si. Fechou novamente os olhos e viu as luzes fortes que a encadeavam. Mas manteve os olhos fechados. Não havia luzes, eram flashes de memória que não sabia se queria ver, se queria recordar. As luzes tornaram-se em mais distintas, eram lâmpadas. Recordou um corredor e os gritos dos médicos. Estavam num corredor comprido. Iam rapidamente, via pela velocidade a que as luzes passavam. Fez um esforço para recordar o que diziam os médicos. Gritavam palavras e siglas que não conseguia entender. Sangue, pediam sangue. Isso conseguia recordar com clareza. Recordou como entravam numa sala cheia de aparelhos estranhos que faziam barulho e tinham luzes. Viu enfermeiras atarefadas de máscara no rosto, médicos de luvas com pinças, bisturis e compressas... Tudo lhe pareceu surreal. Porque estava naquele quarto, naquele hospital, naquela maca?Como se tivesse pressionado um botão de rewind a sua mente regressou mais no tempo. Estava no carro, ouvia na rádio o último êxito de uma banda consagrada e cantava em plenos pulmões. Sentia-se alegre. Parou no semáforo vermelho e desviou o olhar da estrada para ver os sacos de compras que se amontoavam no lugar do pendura. Espreitou para dentro de um deles e com o dedo acariciou o suave tecido branco. Tão pequeno que duvidava que um boneco coubesse lá dentro. As primeiras roupinhas...Abriu os olhos de repente. Tentou mexer os braços mas estes pesavam-lhe demasiado. Olhou para o lado direito e viu o seu braço com uma agulha espetada. Tentou com todas as forças do seu ser levantá-lo e levou-o ao ventre. O ventre que algumas horas antes (ou talvez mais?) era redondo e volumoso estava agora quase plano. Sentiu as lágrimas que lhe queimavam os olhos. Uma lágrima silenciosa caiu dos seus olhos e percorreu a face indo alojar-se na almofada branca. Fechou os olhos novamente e recordou tudo, com mais intensidade e rigor. Recordou a ambulância, o sangue, as dores... Recordou o esforço que faziam para a manter viva. Um esforço incapaz de manter o seu filho, a sua razão de ser. Recordou a voz do médico a dizer que estava estável, que tinha perdido muito sangue mas que infelizmente não tinham conseguido salvar a sua gravidez. Tinha perdido o bebé. Perguntou-lhe duas vezes se ela compreendia antes de mandar a enfermeira dar-lhe um sedativo e levá-la para um quarto limpo. A sua mente corria agora veloz. Tinha perdido o seu bebé. Mas... Perde-se um saco, uma carteira... Não um filho. Perder dá a ideia que se pode achar novamente. Algo impossível no seu caso. Então porque é que o médico tinha dito que tinha perdido? Só poderia achar o seu filho quando morresse também. E mesmo assim será que o iria achar? Nunca tinha acreditado em vida após a morte não sabia se era uma boa altura para começar...Sentiu o cheiro metálico do sangue. Ainda de olhos fechados sentia aquele odor característico. Será que alguma vez aquele cheiro a abandonaria? As pálpebras continuavam a pesar. O cheiro intensificava-se. A dor física ia sendo lentamente substituída por uma dor no peito que nada tinha a ver com o coração enquanto órgão. Algo a oprimia. Lágrimas por derramar, gritos por libertar, tensão por dissipar. Mas não tinha forças. Sentia-se cada vez mais fraca. E um suave torpor invadia o seu corpo. Ouviu muito ao longe uma espécie de campainha que provinha de uma máquina ao seu lado. Ouviu os passos apressados de alguém que gritou por auxílio. Por entre as palavras ouviu alguém gritar que era uma hemorragia. Mas o seu corpo não reagia. Deixou-se invadir pelo doce sono da morte e partiu em busca do seu filho perdido. TM

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